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sábado, 12 de outubro de 2013

Escutando as crianças no Divã da Educação Infantil

Deixa eu falar e seus encaminhamentos! Ao ler o livro Deixa eu falar!, publicado pelo MEC/Rede Nacional Primeira Infância/Secretaria Executiva/OMEP, eu me surpreendi, pois é muito raro ver materiais produzidos pelas crianças. A publicação contou com um processo de escuta às crianças de 3, 4, 5 e 6 anos. Os questionamentos que perpassaram a elaboração da publicação foram família, comunidade, educação, mídia, diversidade, violência, brincar, amizades, saúde, cidadania, etc. A coordenadora do projeto, Monica Munne, destaca seus desafios: “Deixei guardado meu lado adulto, resgatei o prazer da infância e fui em busca de ouvir, me surpreender, me encantar, me entristecer com histórias fantásticas de uma turma que sabe muito, porque ainda vê a vida com a verdade do coração” (2011, p. 29). Como fazer parte do universo infantil, se muitas vezes não atribuímos sentido às falas das crianças? Como escutá-las em suas interações? Pensar a infância e suas multiplicidades de vivências e experiências é o que venho ousando fazer, como professora pesquisadora deste universo. Por isso, resolvi refletir e (res)significar as relações que envolvem o escutar/ouvir as crianças em suas interações entre pares e com os adultos. Para dar continuidade a esta conversa, é fundamental que possamos compreender as diferenças que perpassam as ações de escutar e ouvir. Escutar não é o mesmo que ouvir. Ouvir envolve o campo dos sentidos; escutar envolve o inconsciente e as relações subjetivas que se estabelecem no ato de ouvir. Freire (apud Saul, 2010) destaca que, em uma escuta paciente e crítica, podemos passar a falar com e não falar para. Escutar torna-se muito diferente, requer autoconhecimento e conhecimento do outro. Muitas vezes, pode ocorrer de forma silenciosa ou não verbal, o que envolve as múltiplas linguagens. Nessa perspectiva, Junqueira (2005) conceitua crianças e professores como sujeitos leitores uns dos outros e uns para os outros, interlocutores em produção de um diálogo finito e ilimitado em busca de conhecimento e intervenção de si sobre o mundo. Esse diálogo vai sendo tecido pela interação intencional e articulada desses dois sujeitos entre si e junto a uma multiplicidade de linguagens em que as crianças produzem-se como crianças, os professores produzem-se como professores e, juntos, produzem a relação pedagógica. Ouvindo as crianças: a história do Ben Dez Em recente visita a uma escola infantil e durante conversas com as crianças, conheci um aluno de 5 anos, o “Ben Dez”. Por mais que minhas idas a essa escola fossem alternadas, o aluno sempre vinha correndo conversar comigo. Adorava vê-lo e conversar com ele também, assim como com outras crianças dessa escola, que muitas vezes já me percebiam como alguém que fazia parte daquele espaço. Elas me pediam ajuda, me convidavam para brincar e me elogiavam, mas “Ben Dez” estabeleceu uma relação muito forte comigo. Quando entrava na sala ao lado da dele, ele escutava minha voz e vinha correndo pelo solário que interligava as duas salas. Então, quando me via, sempre tinha uma história para me contar, algo diferente que queria que eu ficasse sabendo, tanto do seu universo infantil quanto da sua vida em casa e na escola. Conversar com “Ben Dez” era sempre muito bom. Um dia, casualmente, conheci a sua mãe, então contei para ela da minha amizade com o menino e percebi que a mãe olhou para o meu rosto e disse: “Professora, a senhora não me leve a mal, mas então é a senhora a ‘professora das sobrancelhas pretas’ de quem ele tanto fala? Na verdade, ele me conta que essa professora não está na escola todos os dias, mas relata tudo o que acontece quando a senhora vai à escola”. Para Pirce (1995, apud Junqueira, 2005, p. 2), “signo é tudo aquilo que está, em parte, no lugar de alguém ou de alguma coisa, representando, sempre em parte, este alguém ou esta coisa para um sujeito-leitor”. Fica a evidência do quanto realmente nos produzimos, nos significamos, nos apresentamos através de signos e linguagens ao nosso respeito. Por meio dessa pequena história, o que proponho problematizar é o seguinte: como fazer parte do universo infantil, se muitas vezes não atribuímos sentido às falas das crianças? Como escutá-las em suas interações? “Talvez a educação infantil não costume ver e escutar, de forma atenta e interessada, os gestos das crianças, e o modo como elas interpretam o que fazem, o que sentem e o que dizem” (Sarmento, 2012, p. 5). Escuto muitas pessoas dizerem que “as crianças são muito perceptivas, gostam de quem gosta delas!”, o que já é um clichê. Na verdade, será que é isso? Compreendo que as crianças gostam é de ser escutadas pelos adultos, o que muitas vezes não acontece; elas são apenas ouvidas. A ação educativa com crianças é realizada por adultos que já foram crianças, mas em outras condições históricas, políticas, culturais, havendo uma relação de alteridade entre o adulto e a criança que nunca é superável pela memória da criança que o adulto foi (Sarmento, 2012). Concepções de infância(s): para pensar ou repensar Nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI), a criança é concebida como sujeito que, nas interações, brincadeiras e práticas cotidianas que vivencia, constrói sua identidade pessoal e coletiva, brinca, imagina aprende, construindo sentido sobre a natureza e a sociedade, produzindo cultura. Muitas vezes, não percebemos tal concepção nas relações que se estabelecem entre adultos e crianças, nas quais a criança não é compreendida/escutada porque ainda não cresceu, o que precisa ser superado. Segundo Narodowski (2001), é importante compreender a infância como uma construção recente, produto da modernidade — é claro que não em seus traços biológicos (embora não seja possível desconhecer as relações entre o biológico e o cultural), mas em sua constituição histórica e social. O nascimento da infância conforma um fato inovador, pois, além disso, a existência da escola ocupa um papel de destaque, na medida em que precisamos compreender que “ser aluno” não é um passo posterior ao “ser criança”, mas sim parte de sua gênese. Relações institucionalizadas: implicações para a escuta das crianças Pensar as organizações dos tempos e espaços nas escolas infantis é sempre um grande desafio. De um lado, existe uma rotina marcada por horários e organizações estanques; de outro, um cotidiano (Barbosa, 2006) de possibilidades que vai sendo construído no dia a dia com as crianças em suas relações entre pares e com os adultos. As rotinas são produtos culturais criados, produzidos e reproduzidos no dia a dia, tendo como objetivo a organização do cotidiano. São rotineiras um conjunto de atividades como dormir, estudar, trabalhar, reguladas por costumes e desenvolvidas em um espaço-tempo social definido. Tais ações, com o decorrer do tempo, tornam-se automatizadas, pois é preciso ter modos de organizar a vida. Em contraposição à rotina, há o conceito de cotidiano, o qual é muito mais abrangente e refere-se a um espaço-tempo fundamental para a vida humana, pois é nele que acontecem tanto as atividades repetitivas, rotineiras, triviais, como também é o locus onde há a possibilidade de encontrar o inesperado, onde há margem para a inovação (Barbosa, 2006). Desse modo, sugiro (re)pensar o quanto se faz necessário diferenciar a vida cotidiana, em sua complexidade e em sua amplitude, das rotinas. É impossível, neste momento, não abordar concepções de currículo e suas relações nas escolas infantis. Anguita e Hernández (2010, p. 13) compreendem o currículo como uma trama de experiências, relações e saberes: “Para nós, o currículo é um espaço e um tempo propiciadores de experiências que permite descobrir-se na relação com os outros”. Considerando currículo como tudo aquilo que intermedeia a relação professor/aluno, aluno/professor, professor/professor, aluno/aluno (Junqueira, 2005), lembro-me de um episódio vivenciado recentemente em uma apresentação para os pais em uma escola infantil. Em uma turma de crianças com cerca de 3 anos, elas estavam dançando e dramatizando a música Balão Mágico. Havia um aluno muito contente que dançava e cantava alto. No meio da apresentação havia um balão, construídos pelas professoras, o qual tinha um balde grande como base, e um aluno menor dançando ali dentro. O menino dançarino aproximou-se do “balão mágico”, ao lado do qual estava a professora da turma, e trocou algumas palavras com o colega que estava dentro do balão. Olhou para a professora, que não o percebeu, pois cantava e batia palmas, muito feliz com a apresentação. O aluno então resolveu puxar a barra da blusa da professora, para que ela olhasse para baixo e o escutasse, porém novamente sua tentativa foi em vão; ela não o percebia. Ele puxou ainda mais forte sua camiseta, e a professora, com um sorrisinho amarelo, olhou para baixo e, provavelmente, ouviu o que o menino tinha a dizer, o que acredito ter sido um pedido para entrar no balão com seu amigo. A professora concordou com a cabeça, mas não o colocou lá dentro, e sim pegou suas mãozinhas, estimulando-o a bater palmas, como “enlouquecidamente” ela estava fazendo. O menino ficou muito bravo e novamente puxou a camiseta da professora, só que dessa vez quase a deixou desnuda. Falou de novo com ela. A professora então resolveu escutá-lo e colocá-lo dentro do balão. Ele entrou no balão muito contente, porém a música acabou. É impossível descrever sua decepção, pois toda a sua tentativa de fazer com que a professora o escutasse durou quase todo tempo da apresentação. Tenho certeza de que muitas contribuições surgirão dessa publicação: a ousadia, a coragem, o respeito, as trocas, as relações de reciprocidade e, o mais importante, a escuta às crianças em suas manifestações. Que esta conversa iniciada aqui seja também um ponto de partida para (res) significarmos as práticas pedagógicas presentes nas escolas infantis, revendo concepções, organizando os currículos (em especial as relações de tempo-espaço) e podendo construir um ambiente privilegiado para o diálogo, oriundo da escuta, das interações intencionais e articuladas com/para as crianças.

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